16 janeiro 2008

Um presente



Um.
Número um. Ondas na Cala di Sotto. Pequenas.
Numero dois. Ondas. Grandes.
Número três. Vento dos rochedos.
Número quatro. Vento nos arbustos.
Número cinco. Redes tristes do meu pai.
Número seis. Campanário da Addolorata. Com padre.
Número sete. Céu estrelado da ilha.
Número oito. O coração do Pablito.


Este homem, nascido numa ilha de pescadores sempre enjoou no mar, nunca quis ser pescador. Calhou ser carteiro de um morador apenas: Pablo Neruda, durante o exilo político deste em Itália.
Fez esta gravação para enviar como presente a Neruda quando ele já havia regressado ao Chile, acrescentando a explicação:

- Lembra-se daquela vez que me pediu que contasse uma coisa bonita da minha ilha aos seus amigos e eu não sabia o que dizer? Agora já sei. Por isso, quero mandar-lhe esta gravação que, se quiser, pode ouvir com os seus amigos. Senão, pode ouvi-la sozinho. Assim, vai lembrar-se de mim e da Itália. Quando se foi embora, pensava que tinha levado consigo todas as coisas bonitas. Mas agora… agora sei, percebi que… que deixou algo para mim.

O carteiro de Pablo Neruda, de Michael Radford
Sobre o saber viver bem. Sobre poesia.
(acrescento eu também, que o filme é muito mais colorido do que aqui aparece)

14 janeiro 2008

Será machismo?



Pelas 11 da manhã de Domingo estava eu empoleirada em cima da chave que serve para abrir os parafusos do pneu. Os meus 49kg (surpreendentemente para mim) estavam a chegar para os rodar. Um pouco apenas, tendo o cuidado para não me desequilibrar (como avisava o manual de instruções… categoria de coisas à qual não sou nada dada, mas hoje decidi que o lia e seria para “não mais o repetir”).
Chegou um homem, das bombas, simpático perguntou se precisava da ajuda. Foi preciso dizer-lhe que não, não mesmo… é que eu estava numa “aula” de mecânica. Sim porque essas coisas é melhor aprender num dia por vontade, do que noutro por obrigação e longe de casa (ponho-me logo a imaginar: noite cerrada, temporal na estrada e eu a tentar mudar o pneu sem nunca ter visto o preciso macaco – podiam ser todos iguais, mas não! - nem todas as coisas que vêm naquela malinha). Ele estranhou, deve ter pensado “com aquela cara de menina, claro está que na hora H grita e pede ajuda!”
Ao que aparece fui aprovada na aula.



Pelas 11 da noite de Domingo estava eu decidida a estacionar num pequeno lugar. Pisca. Parar. Começar marcha-atrás. Um homem, que devia trabalhar naquele café resolveu parar. Ficou parado no passeio, pernas abertas, mãos na cintura. Escapou-se-lhe um sorrisinho gozão pelo canto da boca esquerdo. Fiz de conta que não o vi. Deve ter pensado “com aquela cara de anjo coitada, vai desistir”. Ao pensar no que ele estaria a congeminar fiz a minha cara de má. Ele lá ficou a ver como me desenrascava. Bati a porta com força, afastei-me decidida de um dos melhores estacionamentos dos últimos dias, colado ao passeio.

Nota final: expressões como "cara de menina" ou "cara de anjo" obviamente não são da minha autoria ou agrado.

11 janeiro 2008

Control


Control, de Anton Corbijn

Há muito que não saía do cinema sem conseguir ligar o radio do carro.
Há muito que não saía de um filme sem me apetecer falar, de todo. Delícia ter ido sozinha, sala quase vazia, preto e branco no ecrã, boa música (não fosse ele sobre Ian Curtis e os Joy Division).
Em todos os aspectos: de rara sensibilidade.

08 janeiro 2008

reencontro



Esquadros
Adriana Calcanhotto

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome dos meninos que têm fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(Quem é ela? Quem é ela?)
...
Transito entre dois lados, de um lado
Eu gosto de opostos
Expondo meu modo, me mostro
...

O primeiro caixote que fiz: os cd's.
Entre gravações e cd's por aqui perdidos encontrei "Público", da Adriana Calcanhotto.
Sei que a música pode parecer triste, mas o reencontro foi alegre.
Foram estas frases que mais gostei hoje.

07 janeiro 2008

Sonho de menina.

Sonho de menina.
De sempre.
Sempre foi, para mim, incompreensível perguntar numa casa por abre-latas, saca-rolhas ou uma chave de fendas e me dizerem “não tenho”.
Sempre pensei, a minha casa pode não ter mais nada, mas essas coisas tem de ter!
Esta semana, cheguei-me de mansinho ao meu pai e disse: “Chegou a hora de ter uma caixa de ferramentas só para mim, não é?”
Ele concordou, riu-se: - Vamos ao Aki.
- Ao Aki?? Eu não quero ir ao Aki, eu quero ir às lojas de ferragens da Baixa! Sabes aos anos que fico a olhar para as montras e penso… “quem me dera precisar disto.”(?)
E lá fomos. Eu seguia-o. Loja a loja. Peça a peça. Encantada da vida!
Ele ria-se, contente, sabe-me bem capaz de lhes dar uso.
Se quiserem tirar ideias, aqui fica o Menu essencial:

- 1 alicate
- 1 martelo
- 1 busca polos
- 2 chaves de fendas
- 2 chaves estreladas
- 1 chave inglesa
- 1 fita métrica
- 1 lata de óleo

Pregos, parafusos, buchas e colas a comprar só depois, a gosto, conforme as necessidades.

Sem ser para a caixa: 3 facas de cozinha que cortam mesmo, abre-latas, saca-rolhas e pedra de afiar facas. Ficou a faltar o quebra-nozes.
E quando for grande compro uma black decker!

05 janeiro 2008

Home Cinema VI


THE SCIENCE OF SLEEP, Michel Gondry

VER TRAILER AQUI

Demorei uma boa meia hora a achar que valia a pena continuar a ver o filme.
Não sei se foi das montanhas de colagens e máquinas iguais às tantas que fiz com os pinóquios no Mocamfe, de como elas realmente ganham vida quando acreditamos.
Não sei se foi de algumas frases que fixei.
Não sei se pelos sonhos muito elaborados, muito desordenados, com muita informação que não seria necessária à história do sonho.
Não sei se foi dos cartões. Se foi de olhar para aquelas casas e pensar o que é que dali gostava de ver numa casa minha.
Não sei se foi da mochila e do gorro.
Não sei se foi dos presentes. Não sei se foi da maluquice de construir qualquer coisa sem sentido nenhum, só porque achamos espectacular no crescente de ideias.
Não sei se foi de (re)conhecer aquela história.
Mas gostei muito.

Home Cinema V



LE CHIAVI DI CASA, Gianni Amelio
VER TRAILER AQUI

"Temos a sensação a cada minuto que estamos a ver algo real, algo com o inegável sabor da vida." - Kenneth Tutan, Los Angeles Times

04 janeiro 2008

Enerva-me que falem de África



Enerva-me que falem de África como se:

- Fosse possível falar com conhecimento de causa verdadeiro de 54 países diferentes.
- Fosse possível ter alguma ideia ou definição generalizada correcta sobre mais de 800 milhões de pessoas.

Enerva-me que falem de África como se:

- O caso ficasse arrumado com meia dúzia de exemplos de que a causa da miséria é deles mesmos.
- Aquele continente devesse aos países ricos uma gratidão eterna pela ajuda humanitária.

Mas também me Enerva que falem de África como se:

- Fossem pobres mas felizes.
- As povoações fossem coisas curiosas de ver e de tirar bonitas fotografias.
- As pessoas não tivessem direito a querer as mesmas coisas que nós (telemóveis, por exemplo.)



Obviamente que não pode continuar tudo como está. O que está mal tem de mudar. O que é “curioso” mas humilhante tem de ser reconhecido (aqui lembro-me do outro lado do mundo: Cuba) e transformado.
Obviamente que os povos de África têm de reconhecer os seus erros, têm de mudar de governantes… claro que eles têm culpa. E NÃO há soluções simples.
Mas nós aqui temos a mania de dizer que eles não têm higiene, mas quem causa maior poluição no mundo ainda somos nós. Quem provoca as guerras em grandes escala somos nós (ainda que não as façamos nos nossos países). Quem ajuda (ou não) África por interesse somos nós.
Em última instância, ainda que não tivéssemos responsabilidade nenhuma na pobreza dos outros, não nos deveríamos sentir tranquilos enquanto ela existisse. Seja onde for.

Fotografias do Projecto em S. Tomé e Príncipe 2006, Bússola.

03 janeiro 2008

Divertimento universal



No câmara clara Eduardo Lourenço falou de divertimento universal. Da quase obrigatoriedade ao divertimento. De como ele é fácil, afinal entra-nos em casa. É como se tivéssemos de viver num musical permanente.

Lembrei-me de conversas, a propósito do meu sobrinho, sobre o estímulo incessante que as crianças têm. Parece que tudo tem de ser luz e cor, e som. Muitos sons. Todos os bonecos freneticamente ganham novas funções e propriedades, movem-se rapidamente.
Lembrei-me de dizer que os nossos pais se preocupavam muito em nos estimular, e contavam-nos histórias entusiasmantes e efusivas, afinal isso não nos seria dado de outra forma. Depois acrescentei, talvez com o R o nosso papel tenha já de ser diferente, talvez seja mais importante dar-lhe calma, tempo, espaço vazio para ele ser como quiser.



Depois Beatriz Batarda acrescentou:

"Parece que não se suporta o momento da nostalgia, o momento da doçura, o momento, às vezes, da tristeza. Do luto, a propósito da morte. Cada vez mais há esta pressão e esta expectativa de que temos de estar sempre "hype" e porreiras e produtivas e criativas e cheias de energia e jovens, eternamente jovens."

Lembrei como sinto serena os meus mortos. Todos eles. De como foi importante ir aos seus funerais. Nunca me afastaram de os chorar, de os ver mortos, de lhes falar... e falo ainda. Posso não encontrar sentido, mas encontro calma. Companhia. Cuidam de mim e eu sei.
Lembrei como é bom quando nos sentimos bem estando quietos. Como é bom sentir "estou como estou, não tenho obrigação nenhuma de estar como esperam".
Como hoje, a olhar para o mar bravo-muito-bravo, em Espinho.

É preciso coragem para a vida!

Foi com esta frase que entrei em câmara clara, desta vez.
(sempre sem me lembrar que é dia, sempre sem esperar encontrar).
A entrevistada era Beatriz Batarda. Desde o filme "Quaresma" que lhe tenho atenção.
(Lembrei a enorme felicidade de ela ter aceite escrever no Comtextos.)



















Mais atenção enquanto ela lia em inglês.

“Nunca ouço a palavra “Fuga”
sem o sangue acelerar,
sem súbita esperança,
sem intenção de voar!”


Houdini's Box – On the Arts of Escape
Adam Phillips

Uma vez por outra sabe bem lembrar um conjunto razoável de coisas que temos orgulho de ter feito.