25 maio 2007

Melodia interna


As histórias clínica modernas aludem ao sujeito numa frase rápida («Uma fêmea albina trisómica de 21 anos») que tanto se pode aplicar a uma ratazana como a um ser humano. Para recolocar o sujeito humano no centro – o ser humano que sofre, que se aflige, que luta – é necessário aprofundar a história clínica até que ela se transforme numa narrativa ou conto.

in O Homem que confundiu a mulher com um chapéu, Oliver Sacks.

Claro que eu tinha e gostar desta frase. Narrativa. Conto. Não no papel mas cá dentro.
Desta e de muitas outras deste livro que no meio de tantas disfunções neurológicas encontra sempre a pessoa, as suas aptidões, as suas potencialidades. A música que as integra, que as harmoniza; o desenho que as realiza; o jardim que as serena; a mímica que as surpreende…

Gostamos mais com uns doentes do que com outros. Gosto sempre mais de estar com eles sozinha. Alguns tenho de interromper tocando no braço: “Olhe…”, outros não tenho vontade de interromper.
Ele estava a responder às minhas perguntas.
Calava-se muito concentrado enquando eu ouvia a "máquina descompassada" como chamou ao seu coração. Um António, um António mais. Este também era velhote. Mas este queria viver bem, saudável, e fazia perguntas. Desde cedo que percebi que me respondia mas que uma ideia o assaltava repetidamente. Via no olhar dele que se fixava, momentaneamente distraído do que eu dizia. Depois disse:
- Ó Dra., desculpe interrompê-la. Mas a Dra. deve ter sido muito estudiosa. Tão nova e já é Dra. Vinte e poucos anos, não?.
Eu ri-me e disse que ainda não sou médica, que é normal ser assim. Continuámos. Passei um dia sem o ver. Voltei depois e ele fez um grande sorriso para os meus colegas e disse:
- Olha, hoje a Dra. está cá!
A meio da visita virou-se para eles mesmo contente:
- Esta Dra. já passou férias na minha terra!!
Dei uma gargalhada. O que as pessoas fixam e valorizam é sempre inesperado. Apesar de me achar muito nova (demasiado mesmo) eu era a Dra. dele e esperava-me.

2 comentários:

my name disse...

nota: as histórias clínicas não se dirigem aos doentes como fêmea ou macho. mas "doente do sexo feminino, com 73 anos de idade, iniciou dor..."
não deixa de ser parecido a uma ratazana ;)

mjp disse...

heheh. tb podias falar dos "cirurgiães"? esses que são de outra raça...