28 novembro 2007

Véspera


Foi quando me levantei da mesa.
Estava a música Les Jours Tristes. E o título esconde o optimismo que encontro sempre nesta música. Senti-me subitamente feliz, muito feliz. Ia embora, deixar os rituais de 19 dias bem contados. Quase sempre sozinha. Na casa grande dos avós. Eu e os livros do estudo. E a máquina de escrever do avô. E o sol até à hora de escurecer, às vezes a chuva furiosa até à hora de deitar.
Senti-me subitamente grande. Porque os dias tinham passado e eu tinha cumprido o que queria. Serenamente. Com apenas uma ou outra altura de zanga… aquela minha zanga que não resiste à aventura de ter de me safar quando a água e a luz falham horas a fio e a lareira torna-se refúgio. Ou à sempre surpresa do ratinho a passar, sempre no mesmo sítio, quase sem medo (dele e meu).

Pelo caminho tive de encher os pneus do carro. E senti-me feliz outra vez. Porque gosto da sensação de ficar com os dedos pretos-pretos, de me irritar e arrancar a jante, de pensar a rir “percebo porque é que as pessoas pagam para isto, mas eu não preciso de ajuda!”.

Lembrei-me de, na semana passada, olhar para a bigorna do avô Ratão. E de dizer ao meu pai “Imagino o tempo que ele demorou a montar isto exactamente como ele queria. Escolher o tronco perfeito, ensaiar a posição da bigorna” (que o meu pai explicou que era um bocado de carril de comboio) “Ajeitar, pôr os calços para que ela não dançasse. Imagino-o a rir-se no fim, a mirá-la”. E sem dizer pensei… os Patrícios sempre precisaram de encontrar os momentos de silêncio, de desafio solitário. Sempre precisaram… para depois poderem estar alegres com as outras pessoas. E diverti-me da memória do meu avô a endireitar pregos à martelada aos sábados de manhã. E pensei… os Patrícios precisam todos muito de dormir, mas têm horas desencontradas. Uns deitam-se cedo e levantam-se cedo (o meu avô era assim) e outros gostam de se deitar tarde e levantar tarde. O filho mais novo do meu avô, que é desses, percorria o corredor (eu, do meu quarto, ouvia-o a arrastar os pés). E dizia “Pai, tem de endireitar pregos logo ao sábado de manhã?” E o meu avô respondia com carinho pândego “Ó João, mas eu estou a martelar devagar”. Eu sorria enroladinha nos lençóis e… mais um sono.

Regressei a casa e pensei. Talvez nunca consiga escrever o que uma amiga minha me escreveu: “Fiz tudo o que podia”. Talvez não, acho sempre que não chego a esse ponto. Mas que me esforcei lá isso esforcei. E vai correr mal? É o mais certo. E deixem-se de coisas que eu não me costumo enganar no que sei e no que não sei para exames. Mas também pensei, não é a coisa mais difícil nem mais importante que já me aconteceu. E o que for, será! Que se lixe!
E senti calma.

29 de Novembro: Exame de acesso à especialidade. E eu que nunca acreditei que a véspera deste dia chegasse de facto.

Agora desculpem, mas não resisto a acrescentar que me tenho lembrado várias vezes desta tira :)

(para ver maior clicar em cima da imagem)

6 comentários:

Luís disse...

Se há coisas que não vêm no Harrison, estas conclusões/reflexões que partilhas (quais estudos MPJKT ou RPS34 sobre o efeito dos níveis elevados de colesterol LDL na mortalidade aos 4 anos, 3 meses e 1 dia...ou seja o que for que estou para aqui a inventar...)são algumas delas. Talvez na próxima edição. Ou a editar no mítico "Patrício´s" lol.

Já agora: em jeito de partilha de sofrimento, corra como correr, vai correr bem. Serviu ao menos para chegar até aqui. O que já é uma vitória. Correcção: uma grande vitória.
Se servir de consolo (a mim até que me serve),não te esqueças: há sempre um Pico por aí...;) (ou qualquer coisa mais perto, vá...lol)

P.S: Excelente a BD, escolhida a dedo. [tira não é um pouco "brazuca"?;) efeito colateral harrisoniano...I guess...]

my name disse...

Como brasileira? Ele fala sempre em "tu"... de qualquer forma não é responsabilidade minha, e sim do livro (mas a tradução é de um português)

my name disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ze&Jose disse...

vim aqui sabendo que ainda nao era dia 29, mas que gostava de te deixar um beijo de boa sorte.

Anónimo disse...

Ia para escrever MAS descobri que o Luis te disse, exactamente, o que eu diria... meno aquelas palavras caras da medicina doida. Só acrescento o que tu própria escreveste:
Mas também pensei, não é a coisa mais difícil nem mais importante que já me aconteceu. E o que for, será!

pai zé

sofi disse...

não sei como, vim aqui dar e gosto muito.
Boa sorte!