04 julho 2007

o discurso do presidente

Este é um post antigo. Um rascunho por aqui perdido desde Maio...
E eu que não gosto nada de rascunhos!
Peço desde já desculpa a quem não se interessa por uma destas duas coisas:

- neurologia;
- as formas como entendemos as outras pessoas, como as descobrimos e lemos.



A história começa com o som de gargalhadas vindo de uma enfermaria de afásicos (são pessoas que, por diferentes motivos, não compreendem as palavras, não percebem o seu significado. Aprendem a viver e a disfarçar essa incapacidade guiando-se pelo tom da conversa que se lhes dirige, e quando falam usam palavras coloquiais). Assistam ao discurso do presidente na televisão.
Médicos e enfermeiros não entendiam, o discurso era perfeitamente normal. O presidente transbordava de simpatia e usava toda a sua retórica para conquistar a audiência. Aquele grupo ria.
Quem escreve esta história verídica explica: «Pode-se mentir com a boca», escreveu Nietzsche, «mas com a expressão dizemos sempre a verdade.» Os afásicos são imensamente sensíveis à expressão, a toda a falsidade ou atitude imprópria do corpo ou da postura. São as expressões, o dramatismo, os gestos falsos, mas acima de tudo, é a cadência e a entoação das vozes falsas de que se apercebem os afásicos. Embora não percebam as palavras, as grotescas incongruências e falsidades são óbvias para eles.
Era por isso que se riam do discurso do presidente.




Mas...
Entre eles, estava uma senhora com o problema inverso (agnosia tonal), ela perdera a sensibilidade à expressão e entoação tendo mantido a capacidade de compreender as palavras. Tinha sido professora de inglês e poetisa de reputação.
Explica o autor: Ela não sabia se o presidente estava a usar um tom de voz triste, alegre, zangado... Podia olhar para as caras das pessoas, para as suas posturas e movimentos enquanto falavam, mas os seus olhos já a atraiçoavam e Descobriu então que tinha de prestar uma enorme atenção à exactidão das palavras e ao uso das palavras e insistia que todos à sua volta fizessem o mesmo (…) «Palavras definidas em lugares definidos.» (…) O sentido era totalmente dado pela escolha atenta, e referência cuidadosa, das palavras. No final do discurso disse: «Ele não é coerente», observou. «Não fala em prosa correcta. O uso que faz das palavras é impróprio. Ou tem uma lesão cerebral ou tem algo a esconder.»

Os únicos que perceberam que o presidente mentia foram os que tinha lesões cerebrais.
FORAM ELES OS MAIS LIVRES.



O livro citado: O Homem que confundiu a mulher com um chapéu.
O autor: Oliver Sacks.

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