09 julho 2007

Editorial

“Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me.
Mal posso acreditar que tenho limites,
que sou recortada e definida.
Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas,
vivendo nas coisas além de mim mesma.
Quando me surpreendo ao espelho não me assusto
porque me ache feia ou bonita.
É que me descubro de outra qualidade.”

Clarice Lispector

Vivendo as coisas além de mim mesma. Paro um pouco na frase. Oiço-a no seu percurso um pouco rápido pelos meus pulmões onde aquece um pouco e depois rebola, fazendo barulho, para a barriga: o lugar que nos lembra sempre que viemos de outro alguém. Um pequeno buraco no meio da barriga existe apenas para nos lembrar. Talvez nos lembre também a nossa vontade de criar outros. Talvez. A frase novamente. Existe muito ruído no tempo que temos para sermos apenas connosco. Músicas mal ouvidas: sem atenção à letra. Cinema de distracção: sem um diálogo ou imagem que ecoe cá dentro. Um texto lido à pressa, sem nos questionar. Alguém que fala apaixonadamente, sem nada retermos (nada voltaremos a ter). Sento-me com a frase. Uma paisagem à minha frente e, sem querer, já não vejo a paisagem, ou oscilo entre me deliciar com ela e entrar em mim. Como numa estrada com curvas onde seguimos calados.
“Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.” (Clarice Lispector). Do que conhecemos de nós, para a estranha imagem ao espelho. E dessa pálida imagem, para nós novamente: cores vivas. Do corpo, onde já viajámos (e as viagens são sempre incompletas) para nós, para essa primeira qualidade que só encontramos nos nossos silêncios povoados. Silêncios povoados das nossas palavras, dos nossos tempos, dos nossos trilhos invisíveis. Essa outra qualidade que nunca encontramos, nunca nos pertence em pleno, além do conhecido. TEMPO PESSOAL.
















Lembrei-me deste texto que escrevi há mais de um ano.
início do Editorial do 44º Comtextos: Mergulho em Mim, da colecção Lugares que nos habitam.

1 comentário:

catarina disse...

[sabes aquelas associações de ideias aparentemente sem sentido, sinapses neuronais demasiado rápidas para as conseguirmos explicar? eu estava a ler o teu post e comecei a cantar baixinho o "capitão romance", dos ornatos.]

"Existe muito ruído no tempo que temos para sermos apenas connosco."
não só. às vezes acho que existe demasiado ruído em demasiados sítios. lembro-me uma vez, ainda miúda, ter lido num livro que o barulho do vento eram as folhinhas das árvores a conversar umas com as outras. e lembro-me de me ter sentado lá fora, no jardim, num degrau de granito, a tentar ouvir essas conversas. [sou cusca, eu!:)] e sabes que mais? consegui! hoje está uma ventania descomunal, mas eu já não as consigo ouvir. há ruído na linha.