12 novembro 2008

Medicina e arte


The Doctor - Samuel Luke Fildes

I ACTO
No sábado, em Coimbra, fui a uma palestra sobre Medicina e Arte.
E não sei bem porquê, não foi nada do que esperava. Mas não sei bem o que esperava. E ainda assim gostei. Ficaram algumas coisas, como esta imagem. E outras, que acho que não vou conseguir evitar publicar aqui em breve.
Se quiserem vejam a imagem maior, reparem como o médico está na casa daquela família. Confesso que só agora reparei nisso. Porque o que me prendeu naquela tarde foi o médico estar sentado. Sentado. Toda a luz possível inclinada sobre a doente. Ele olha, todo-atenção, para a menina. E vemos, é impossível não reparar, que o médico está ali há muito tempo. Sabemos apenas. Mas se quisermos comprová-lo, há uma chávena de chá em cima de mesa, com uma colher dentro. Ele olha a menina. Olha-a. Olha-a. E vê-se que ainda não encontrou resposta, procura-procura-procura "o que terá a pequena?", "viverá?", "que poderei fazer?"
À volta não há máquinas, nem "pip's", nem soros...

Parei. Perdi-me do que o conferencista dizia.
E pensei. Ainda que à parte da casa e agora com muita tecnologia... Será que os médicos ainda olham assim para os doentes? Eu nunca fiquei assim a olhar-olhar-olhar-olhar um doente.


II ACTO
Dia de urgência.
A minha doente que estava melhor começa a ficar subitamente muito mal. Eu só dizia, fazendo acreditar os especialistas "Ela falava, ela estava a sentir-se melhor, ela não estava assim. Ela está mal!". E eles observavam-na preocupados. Depois de uma breve melhoria, ela voltou a piorar. E avisou-se a família e avisavam-se entre a equipa que a doente poderia morrer em breve. E eu fiquei angustiada, dizia para mim "outra vez não, outra vez não... ela estava a ficar melhor... ela estava a falar, ela até se riu". E os soros eram trocados, nebulizações, cânulas de oxigénio mais eficientes. As doses dos medicamentos acordadas, os olhos postos no monitor... e a saturação de oxigénio a apitar a vermelho "61%". Olhávamo-nos na equipa, eles mais para mim... tentavam preparar-me aqueles olhos. E eu pensava "não... não". A saturação subia um pouco, não havia mais a fazer. Afastaram-se todos, a urgência estava a abarrotar, era preciso cuidar dos outros.
E eu fiquei.
Não pensei, fiquei.
Fiquei a segurar na cabeça da Sr.ª, tentando ajuda-la a manter as vias respiratórias mais abertas. Ela em coma.
Não sei quanto tempo passou. Ninguém me chamou. Ninguém se aproximou muito.
E eu olhava-olhava-olhava-a. Começou a abrir os olhos, pausadamente, espaçadamente. E eu dizia-lhe baixinho "Vamos a respirar Sr.ª (...), vamos a respirar.", "Muito bem, vamos a respirar". E ela abria os olhos parecendo verificar que eu ainda estava a ali.
Não sei quanto tempo passou. Quando ela estava melhor, afastei-me. Só então percebi que muito tempo tinha passado. Perguntaram-me por ela, todos ficámos a esperar que a partir daí ficasse bem.


III ACTO
Percebi depois que tinha então conseguido entrar um pouco naquele quadro da conferência. Tinha ficado a olhar-olhar-olhar.


IV ACTO
Hoje, calhou em sorte, a Sr.ª calhar na minha equipa, já internada na enfermaria. Fiz-lhe a visita médica normal, como aos outros doentes, desta vez acompanhada de uma colega. Já me afastava quando ela me chamou dizendo "A Dr.ª estava lá, não estava?!"

4 comentários:

palmo_e_meio disse...

Tantas vezes penso em ti naquela enfermaria e noutras... Penso e recordo o que já ouvi de ti, tudo que já li por aqui e o que já intui... E essas tantas vezes penso que quero ser um pouco como tu, que não sou nada de nada assim... e que posso ser diferente, se fizer também um pouco de esforço e se, simplesmente, estiver atenta e "me deixar ser naturalmente eu"...

Anónimo disse...

É por estas e por outras que sempre soubre que farias a diferença na medicina!

Admiro muito a minha songa!

Anónimo disse...

Encheram-se-me os olhos de lágrimas. Que maravilha és!
pai zé.

Ze&Jose disse...

:) é bom haver quem saiba ter/dar tempo.