01 dezembro 2008

o que mata os nossos mortos é o esquecimento


1ª PARTE
Eu adorava ir à casa delas. Era enorme, um corredor a perder de vista. Eu e a minha irmã tínhamos medo de ir sozinhas durante a noite à casa-de-banho, lá muito ao fundo do um soalho rangente. Elas tratavam-me muito bem, quando se é pequeno é simples saber quem nos quer bem. Adorava-a especialmente a ela, eu era quase da sua altura, e pedia à minha mãe “ela pode ir dormir lá a casa?” (isto era demonstração de carinho apenas destinada a alguns) A minha mãe respondia que não tínhamos cama para ela… e eu logo achava que resolvia a questão, ela cabia na minha!
Elas, eram tias-avós.
Ela, ela era a minha bisavó. Mãe de 11 filhos, 2 pares de gémeos, 1.5m de altura.

2ª PARTE
A primeira vez que me lembro de saber a notícia da morte de alguém foi a dela. A bisavó Piedade tinha morrido.
Não fui ao funeral, mas a minha ideia do que seria não estava longe da realidade. Não me explicaram muitas coisas, mas eu sabia que não a voltaria a ver lá na quinta. Fiquei triste mas não assustada.

3ª PARTE
Seguiram-se outras mortes. Seguiram-se muitos funerais. Aqueles a que fui mais pelos que ficavam vivos, outros como a parte que fica e precisa de se despedir de quem parte. É tranquilizador para mim ver o corpo, torna-se concreta a morte, há uma despedida do corpo da pessoa. Algumas mortes são quase inaceitáveis, mas com muita gente junta, com o falar-recordar-rir-cantar em lágrimas, ficam mais suaves.

4ª PARTE
Concretamente nas pessoas da minha idade vejo com frequência duas formas de reagir à morte. Uma é não querer ir ao funeral, não querer ver o corpo, com a explicação de que se querem lembrar da pessoa viva, bem. Com esta forma há também, por vezes, a fuga de ver as pessoas doentes, a fuga do luto preparado.
Outra forma é pura e simplesmente evitar o assunto, é doloroso demais pensar. Quanto mais falar… Espera-se que nunca a tenhamos de ver nos nossos queridos, embora saibamos que o ciclo natural da vida será esse.

5ª PARTE
O programa Câmara Clara, com Paula Moura Pinheiro, o convidado Manuel Sobrinho Simões (Anatomopatologista), e os testemunhos de José Tolentino Mendonça (Teólogo, Poeta) e Luís Sepúlveda (Escritor). Confirma-se o nosso medo da morte, a nossa vontade de assepsia nesse processo, o afastamento… e, finalmente, o inevitável e (demasiado) brutal confronto com a morte de alguém.
- A fragilidade da vida humana, a pessoa que tinha uma família, que existia e queria viver. O profundo respeito pelo cadáver. A humildade porque não acertamos sempre. O homem que chorou ao encontrar na Argentina o tango que os pais dançavam. [Manuel Sobrinho Simões]
- Um grande tabu revestido de um ocultamento muito grande, o horizonte da morte é completamente afastado do programa de construção do sujeito e das nossas próprias sociedades. Hoje é tudo muito mais rápido, muito mais neutro, muito mais asséptico. [José Tolentino Mendonça]
- É fundamental ter os nossos mortos muito presentes. Desde que falemos dos nossos mortos, desde que contemos as suas histórias, eles estão connosco. O que mata os nossos mortos é o esquecimento. A minha ideia da morte não é traumática. É o fim de algo. Necessário. Estamos. Crescemos. Somos felizes. Sofremos. A vida é maravilhosa… e tem que chegar o dia do fim. [Luís Sepúlveda]


fotografia de Rodney Smith

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bonito. Beijinhos. pai zé